As estratégias das marcas para infiltrar propaganda nas escolas brasileiras
Quando tinha quatro anos, o filho de Luiza Diener voltou da escola com um recado na agenda: ele tinha feito um “pré-exame” de visão na escola, que mostrou haver uma “alteração”. Junto com o recado… um folheto de propaganda de uma ótica, informando que alunos de escola pública tinham desconto.
“Eu paralisei. Como assim fez um pré-exame de vista? Não tinha vindo nenhum aviso, nenhum pedido de autorização”, conta ela, criadora de um blog sobre maternidade.
“Quando fui buscá-lo no dia seguinte fui conversar com a diretora. Entrando na escola vi que perto da porta tinha um estande da ótica, um banner e um totem giratório cheio de óculos escuros e óculos de grau que as crianças estavam experimentando”, recorda.
“Meu filho não tinha nenhum problema de vista. E hoje ele continua sem ter”, diz. “Não era uma aula sobre saúde, era só propaganda”, conta Diener, cujos filhos estudavam em escola pública em Brasília.
A publicidade direcionada para o público infantil é considerada abusiva pelo Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) desde 2014. E o Ministério da Educação tem uma portaria proibindo qualquer tipo de propaganda em escolas públicas.
No entanto, episódios como o relatado por Luiza Diener são extremamente comuns. As marcas usam das mais diferentes estratégias para garantir sua presença no ambiente escolar sem fazer propaganda direta, driblando a regulação.
Embora não veiculem anúncios, por exemplo, as empresas fazem oficinas com professores e alunos, atividades em sala de aula e até distribuem seus produtos para as crianças. Outras patrocinam eventos, promovem peças de teatro nas escolas, visitas à fábrica ou – como no caso da ótica de Brasília – supostos programas de saúde.
“Normalmente as campanhas vêm como ações de responsabilidade social, são vendidas como atividades educativas ou culturais”, diz Ekaterine Karageorgiadis, coordenadora do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana, ONG que defende os direitos das crianças.
Diener conta que conversou com outra mãe cujo filho chegou em casa preocupado, achando que tinha problema de visão por causa do “pré-exame” – uma consulta no oftalmologista mostrou não haver problema algum.
“Ficamos bem chateados. Escola não é lugar de propaganda, e publicidade não tem que ser direcionada para crianças”, diz ela. “A criança está em uma idade em que você está absorvendo tudo, que está construindo os gostos, a visão de mundo, o que considera essencial. Esse tipo de influência é negativa.”
Atividade cultural ou campanha de marketing?
Em janeiro de 2018, o Alana denunciou a marca Bic ao Ministério Público de Minas Gerais por considerar uma de suas ações publicitárias como “direcionamento abusivo de publicidade para o público infantil”.
A Bic havia lançado um projeto chamado “Escola de Colorir”, cuja ideia era fazer atividades nas escolas das ensino fundamental em capitais como São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro.
Nas atividades, as crianças utilizavam diversos produtos da empresa: canetas, lápis de cor, papéis. “A ação expõe massivamente os alunos a imagens, cores, logos e valores corporativos da empresa durante as atividades, que são propostas para serem feitas não apenas nas salas de aula, mas também em outros momentos como recreio ou no tempo de lazer em casa”, diz o Alana na denúncia.
Em resposta, a Bic afirma que um de seus pilares é o “compromisso com a educação” e que faz “ações voltadas ao acesso à educação junto a comunidades locais”.
“No Brasil, a empresa pauta todas suas atividades de acordo com a legislação (…) além de possuir um rígido código de conduta interno. O Projeto Escola de Colorir foi concebido respeitando tais preceitos”, defende a empresa em nota. “Assim, não há violação às normas do conselho.”
Para a nutricionista Ana Paula Bortoletto, do Idec (Instituto de Defesa do Consumidor), a discussão não pode ficar em cima de tecnicismos, já que as estratégias são usadas pelas marcas justamente para ter campanhas publicitárias que atinjam crianças sem desrespeitar formalmente as normas.
Ela defende que a legislação seja endurecida.
“De certa forma, essas campanhas com apresentação de produtos e grande presença das marcas são piores do que um comercial na TV voltado para crianças”, diz Bortoletto. “Você está expondo as crianças aos produtos, elas já vão memorizando, identificando, reconhecendo. As campanhas diretas costumam ser até mais agressivas, por estarem muito mais próximas às crianças e durarem mais tempo.”
Para o Alana, a publicidade para a criança é sempre disfarçada, uma vez que ela não tem o senso crítico para reconhecer que aquilo é uma mensagem comercial. Mas se veiculada no ambiente escolar, o problema é ainda maior.
“A mensagem vem de um espaço de autoridade. A autoridade do professor, da escola, fortalece a campanha publicitária”, diz Ekaterine Karageorgiadis.
Estratégia comum
A Bic não é a única marca a produzir campanhas do tipo.
A Danone teve duas grandes campanhas em escolas em 2016. Eles ofereciam curso de formação de professores, desenvolvimento de atividades em sala de aula para falar da importância de consumir produtos lácteos – setor de atuação da empresa -, distribuição de produtos didáticos e apresentação da peça O Fabuloso Mundo das Descobertas.
Em um único diálogo da apresentação, a palavra “lácteos” chegava a ser repetida mais de 15 vezes.
Em outro caso, no mesmo ano, a Sadia divulgou, com o chef britânico Jamie Oliver, uma ação chamada Saber Alimenta. O projeto piloto foi feito com 20 escolas e 56 professores, que receberam um treinamento da empresa sobre alimentação.
A BRF, empresa controladora da Sadia, diz que “os professores foram capacitados para replicar conhecimento para crianças do Ensino Fundamental” e que os materiais são voltados para os adultos e “não fazem referência a nenhum produto da marca.”
Segundo Ekaterine Karageorgiadis, é grave que as marcas impactem o currículo das escolas – mesmo se o produto da marca não for apresentado diretamente. “A escolha do currículo tem que se basear em um projeto pedagógico planejado para ensinar as crianças a pensarem criticamente. Mas (com as campanhas) o conteúdo é apresentado com um viés e uma orientação mercadológica, não de maneira crítica”, diz ela.
“Será que realmente interessa ficar seis meses falando sobre leite, sem em nenhum momento questionar se ele realmente é bom e necessário para todo mundo?”, afirma.
Para Bortoletto, do Idec, o risco é supervalorizar um produto alimentício. “No caso do leite, por exemplo, ele pode fazer parte de uma dieta saudável, mas não é obrigatório. Depende muito de qual é o leite. Se for uma bebida láctea cheia de açucar, pode fazer mais mal do que bem”, diz ela.
“A criança precisa aprender a diferenciar um produto natural de um processado. A escola é um ambiente para elas aprenderem hábitos realmente saudáveis e pensamento crítico.”
No ano passado, o Ministério Público do Distrito Federal instaurou um inquérito civil para apurar o caso da Danone, que ainda não foi encerrado.
Procurada pela BBC Brasil, a Danone, que cancelou os projetos em 2016, diz que “suas ações de comunicação atendem à legislação brasileira vigente e refletem a missão da companhia em levar saúde ao maior número de pessoas”, e que sua campanha “levou informação e conhecimento sobre a importância de uma boa alimentação de forma lúdica e gratuita às escolas de todo país.”
Por sua vez, a Sadia afirmou que o conteúdo do seu programa “está em conformidade com todas as legislações, regulamentações bem como regras aplicáveis ao setor alimentício e a publicidade de maneira geral” e que “assinou um Compromisso Público sobre Publicidade Responsável no qual se comprometeu a não realizar ações de merchandising de seus produtos nas escolas, sejam elas particulares ou públicas, direcionadas ao público infantil”.
Ajuda ou exploração?
Outra estratégia muito usada pelas empresas é oferecer patrocínio – que vai desde promover campeonatos esportivos a se oferecer para comprar o material ou uniforme para crianças carentes em troca de divulgação da marca.
A Nestlé, por exemplo, tem há anos parcerias para promover campeonatos esportivos em escolas das redes pública e privada. Os eventos tinham exposição de logos e imagens de Nescau em banners e painéis, distribuição de medalhas, troféus e uniformes com o nome e o símbolo da marca, e distribuição de produtos da Nestlé aos presentes no evento.
A empresa afirma que reformulou algumas ações da competição, procurando outros espaços para a sua realização – costumavam ocorrer nos CEUs (Centros de Artes e Esportes Unificados). Segundo a multinacional, os eventos agora não acontecem mais em nenhum ambiente relacionado à educação.
“Reforçamos, ainda, que a participação dos jovens na Copa Nescau® é condicionada à autorização dos responsáveis. Além disso, diversas melhorias vêm sendo desenvolvidas no formato da competição para reforçar o caráter de socialização do evento”, diz a companhia em nota.
“A Nestlé Brasil informa que segue rigorosamente a legislação vigente no país e está entre as empresas pioneiras no mundo na adoção de parâmetros mais rigorosos para divulgar seus produtos ao público infantil”, conclui.
O lado da escola
A questão das campanhas se torna mais complicada no caso do patrocínio, uma vez escolas públicas muitas vezes têm carência de investimento e problemas na infraestrutura – ou seja, acabam tendendo a aceitar qualquer “ajuda” que possam receber.
A BBC Brasil conversou, sob a condição de anonimato, com a diretora de uma escola municipal de São Paulo que recebeu ações publicitárias em 2013 e 2015. Ela falou sobre um dos casos.
“A exposição (das crianças às marcas) não é o melhor dos mundos. Mas estávamos sem aulas de educação física porque a quadra estava em péssimo estado. Resolvemos participar da ação porque tinha um prêmio em dinheiro que seria muito útil para a escola”, diz a diretora. “Nossa falta é tanta que a gente acaba aceitando certos negócios para dar um mínimo de condição para os alunos”, afirma. Tratava-se de um concurso – e o colégio acabou não ganhando.
A empresa alimentícia Tirol promoveu uma competição parecida em 2016. Alunos deveriam criar brinquedos utilizando materiais recicláveis – de preferência, segundo o regulamento, embalagens de “leite longa vida Tirol, caixinhas do suco Frutein, bebida láctea Fibrallis e achocolatado Tirolzinho”. As crianças vencedoras ganharam um bicicleta e uma mochila cheia de achocolatados. E sua escola, um prêmio de R$ 18 mil.
Procurada pela reportagem, a Tirol “diz que está no mercado desde 1974, sempre prezando pela qualidade dos produtos e bem-estar dos consumidores”, e que já prestou esclarecimentos sobre o projeto para o Ministério Público do Estado.
Mas para especialistas, ativistas e alguns pais, aceitar investimento de marcas é a forma errada de atacar o problema – principalmente no caso de crianças pequenas.
“Não podemos deixar que a necessidade de suprir essa falta seja uma justificativa para cercear outros direitos das crianças”, diz Ekaterine Karageorgiadis, do Alana.
Para Bortolotto, do Idec, é preciso que haja investimento e políticas públicas para resolver os problemas nas escolas com dificuldades.
“E mesmo na privada, as decisões sobre currículo e os alimentos a que as crianças têm acesso precisam ser parte de um projeto que coloca o interesse e bem-estar das crianças em primeiro lugar”, diz a nutricionista. “Não é algo que pode ficar à mercê das estratégias de marketing das indústrias.”
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